Revista n° 23
DOI:
https://doi.org/10.18227/2317-1448ted.v1i23.3480Resumo
O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, ou seja, quanto mais bem-acabado for o entendimento político, tanto mais ele acredita na onipotência da vontade e tanto mais cego ele é para as limitações naturais e intelectuais da vontade, tornando-se, portanto, tanto menos capaz de desvendar a fonte das mazelas sociais. (K. MARX) Mantendo seu caráter interdisciplinar, a Revista Textos & Debates traz, em seu 23º número, uma abordagem cujo pano de fundo é, predominantemente, político. Obviamente há variação nos temas, nos níveis de abordagens (mais abrangentes ou mais específicos), e nas áreas de destinação dos debates propostos em cada um dos textos. Mas a esfera da política aparece, sem dúvida, como uma chave analítica central para esta edição. O artigo que propicia uma imagem mais global da dimensão política, por seu caráter mais genérico e abrangente, e que abre a revista é, A questão da universalidade e do humanismo, de Sartori. Neste texto, o ponto central para o autor é realizar um debate sobre a concepção de universalidade e humanismo da obra de Karl Marx e Gÿorgy Lukács. Mas, para tanto, o autor é levado − ao seguir os caminhos analíticos de Marx − a apresentar o conceito de universalidade próprio da sociedade capitalista, ou seja, verificar os laços sociais da universalidade possível e necessária sob o capital: “o caráter universal dos ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo, por exemplo, vem a ter verdade na dominação burguesa, na propriedade privada, no Direito burguês e no Estado-nação”, portanto, a emancipação realizada pela transformação capitalista foi uma emancipação política, “em verdade, a emancipação do próprio mercado e dos imperativos do capital”. (p. 19) O artigo avança com o debate sobre os limites do humanismo contidos nesta forma específica de emancipação política, mas, ao mesmo tempo, indica como nesta forma de sociabilidade suas “soluções e resoluções encontram-se no campo da política e, assim, também no campo da dominação, por mais permeada por uma forma de universalidade que essa dominação possa estar”. (p. 15) Nos posicionando a partir deste prisma, não nos parece trivial que boa parte dos esforços acadêmicos vinculados às ciências humanas e à filosofia depositem na esfera da política seus maiores esforços e esperanças − não raro através de um autonomização total e formalização absoluta da esfera política. Ora, ao se afirmar como esfera resolutiva, de “liberdade” e “universalidade”, as lutas tendem, sob o capital, a convergirem para o âmbito político − e, no limite, ao politicismo − para buscar suas resoluções positivas. Tomemos como exemplo, vinculado a necessidade de universalização do capital, a ampliação e unificação de um mercado internacional que exige um aparato político e jurídico internacional. Partindo de referencial analítico próprio do Direito, Rodrigo Bastos Raposo nos apresenta as discussões que veem ocorrendo sobre a fragmentação do direito internacional, em seu artigo: Quem tem medo da fragmentação do direito internacional? Em sua problemática se expressa, implicitamente, os conflitos entre a necessidade desta universalidade e as vontades dos agentes particulares em busca de vantagens dentro do sistema internacional: Os resultados do grupo de estudos reafirmaram o caráter unitário e sistêmico do direito internacional. Mesmo em contexto de fragmentação, esse caráter é assegurado pelo direito internacional geral, que jaz como pano de fundo para todas as normas, sistemas e subsistemas do direito internacional [...] A expansão e diversificação do direito internacional é um fenômeno decorrente da evolução deste ramo do direito, não uma indicação de seu fim. Portanto, deve ser vista como a busca da realização de oportunidades históricas de desenvolvimento do direito internacional, mas também com a proposição de renovados desafios com relação à manutenção de caráter sistêmico e unitário do direito internacional. (p. 49) Em seu caráter formal, as celeumas do direito internacional parecem desvinculadas das ações práticas dos agentes que arbitra, mas, nos aproximando de aspectos concretos da vida societária, verificamos os vínculos que tencionam esta universalidade própria da sociabilidade burguesa. É o que encontramos, em parte, no trabalho de Hernán Fair que nos apresenta seu “La revolución democrática en el discurso de Hugo Chávez”. Contrastando com boa parte das análises praticadas atualmente, em especial em relação a Venezuela, o autor se esforça para analisar o discurso −tomando o referencial teórico de Ernest Laclau − do próprio presidente venezuelano no período de 1999-2002, a primeira etapa da “revolução chavista”. É louvável o esforço de compreender o discurso antes de criticá-lo, é dizer, se esforçar por uma análise imanente. Contudo, esta prática tem seus problemas potenciais quando o discurso analisado é “autonomizado”, julgando o indivíduo pela ideia que faz de si mesmo. Pois bem, o discurso de Chávez − como qualquer outro, aliás − expressa elementos da realidade que devem ser mediados e criticados em relação as funções sociais que cumpre e sua gênese histórica, ou seja: pelas contradições da vida material. No entanto, frente a enxurrada de críticas totalmente desparametradas a respeito da “revolução bolivariana”, ressaltamos a importância de uma abordagem que expresse o “outro lado”, e, principalmente, que busque apreender a expressão ideológica como uma materialização das forças sociais em luta. Fica aqui, mais uma vez, claros os limites da universalização própria ao capitalismo e, no caso latino-americano, impõe-se uma ampliação do problema: entra em pauta a questão do imperialismo e da subordinação dos países subdesenvolvidos aos padrões necessários ao grande capital. [...] o mais interessante é que o discurso de Chávez realizará uma articulação de equivalência entre o projeto da Área de Livre Comércio para as Américas (ALCA), promovido pelos Estados Unidos e as potências mundiais, e o neoliberalismo. Ademais, não só criticará a ALCA, mas também proporá, em contraposição, uma nova forma de integração nacional e regional, que apresentará uma alternativa ao modelo de inserção acrítica a ordem global. Nesse marco, já no ano de 2001, se referirá a necessidade de conformar uma Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA). (p. 58) Chávez lidará, a sua maneira e coalhado por enormes contradições, de um problema que sempre rondou os países latino-americanos: a relação entre autonomia e subordinação da nação. Questão que a academia, muitas vezes, apresenta como superada ou démodé, mais que resurge constantemente nos conflitos mais variados dentre os países que foram alvos das disputas imperialistas − e de forma dramática, pois se traduz em um alto grau de violência que atinge principalmente as parcelas mais desamparadas destas sociedades. O problema da autonomia nacional reaparece no artigo sobre Florestan Fernandes e a “transição transada”. No qual acompanhamos a reflexão de Fernandes sobre a institucionalização da ditadura militar no Brasil, se contrapondo, assim, a ideia de que houve uma “democratização” no país. Para ele a democratização significaria superar a autocracia burguesa, própria destes países que denomina como “dependentes”, é dizer, significaria a superação da própria dependência. Se nos lembrarmos do debate travado nos anos 60, sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento, a saída apresentada por um dos principais discípulos de Fernandes, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, foi a de que seria possível o desenvolvimento porque a dinâmica interna dos países − a relação entre as classes sociais − permitiria, através de uma atuação na esfera política, um aproveitamento adequado das possibilidades de desenvolvimento, mesmo sob o estatuto da “dependência”. Ao que nos parece, a obra clássica de Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, deixa claro o quão infecunda é a esfera política nacional ao se tratar de problemas relacionados “aos de baixo”. Ou seja, o quão autocrática é a burguesia nacional subordinada ao capital internacional, concentrando riqueza e poder em grau incompatível com a democracia burguesa. Não é de se estranhar as dificuldades dos movimentos sociais para ganharem peso e serem moral e juridicamente respeitados nesses países. Na verdade, no mais das vezes, as pessoas que compõem esses movimentos não tem respeitada nem mesmo a integridade física. Contudo, ao longo dos anos e de acordo com as conjunturas políticas e econômicas, as formas de manifestações desta autocracia burguesa variam entre mais ou menos cruentas. É o que nos apresenta Laura Nazaré de Carvalho em seu artigo sobre a mineradora, ex-estatal, Vale do Rio Doce − fundada sob o Estado Novo e estando hoje entre as maiores empresas de mineração do mundo. Ao longo da história da companhia vemos como a relação entre capital e trabalho foi sempre mediada por relações sindicais que padecem, subjugadas por esta estrutura de dominação que caracteriza o capitalismo brasileiro: seja através da intervenção estatal direta e indireta, característica em seu primeiro período, quando enquadrada pela “conciliação classista”, própria da atuação de Vargas; seja pelos momentos de criminalização e repressão escancarada dos movimentos sociais − agora em outra ditadura: a de 1964; ou em sua face mais “moderna”, que conjuga não só a herança depurada dos períodos anteriores, como também mecanismos mais sofisticados de cooptação e fragmentação sindical: Os casos de terceirização de trabalhadores demitidos para exercer a mesma função como terceirizados no mesmo local são comuns. Nesses casos, os salários são rebaixados e os benefícios não são extensivos aos seus familiares. As fraudes envolvendo empreiteiras que prestam serviço a Vale também são comuns, como, por exemplo, o caso da empresa Serminas, que não possuía empregados, e sim 50 sócios que não tiravam férias e nem recebiam décimo terceiro salário e foi contratada pela Vale para transportar pessoas e materiais. (p. 100) Outra face particular do problema da autocracia burguesa pode ser constatada no artigo de Luciana Marinho de Melo sobre A formação sociocultural de Boa Vista. Neste caso, vemos como sistematicamente a posição dos povos autóctones do extremo norte brasileiro é desrespeitada. A luta pela terra na região ganha contornos dramáticos − verdadeiros massacres que passam bem longe dos olhos e preocupações das classes médias dos grandes centros − durante toda a história nacional e que continua acesa. Mantendo formas societárias inteiras sempre sob o risco dos interesses “universais” próprios da sociabilidade do capital: Desse retrato, pouco se alterou nos dias atuais. Embora haja um restrito grupo indígena que tenha alcançado certa ascensão social em Boa Vista, destaco que a grande maioria sobrevive em condições de extrema vulnerabilidade social, na preferia da capital. As mulheres indígenas permanecem trabalhando com serviços domésticos e os homens ainda servem de mão de obra de baixo custo no ramo da construção civil. [...] assim como a existência de estradas nas proximidades das comunidades e a constante travessia de automóveis, evidenciou um grave problema que se apresenta diante das famílias. Trata-se do tráfico de meninas e mulheres indígenas para redes de prostituição na cidade [...] (pp. 125 e 127) A proposta da autora se vincula também a atuação no âmbito político, como forma de resolução destes conflitos, demonstrando como seria coerente uma participação bem mais ampla das populações originarias da região − em especial os povos Macuxi e Wapichana −, no que diz respeito a cultura, na estrutura administrativa de Boa Vista. Em síntese, os vários artigos reunidos no presente número da Revista Textos & Debates nos convidam para diálogos específicos dentro dos quadros epistemológicos e temáticos de interesse variados. Mas podemos estender um pano de fundo sob tal diversidade, buscando uma unidade no diverso, no qual ressaltamos as contradições que a política expressa como esfera de atuação privilegiada e seus limites inerentes: a contradição entre vida pública e vida privada, entre interesses gerais e particulares. Daí a escolha como epigrafe desta Apresentação de um texto pouco conhecido de Marx, autor que pensa sempre a política como metapolítica, pois, no caso contrário, ao pensar a política tendo por fim a própria política, tender-se-ia divisar “a causa de todas as mazelas na vontade”. Para Marx o entendimento político tende a ocultar as raízes da penúria social e a perpetuar o Estado; e isto por uma questão simples: “o Estado jamais verá no ‘Estado e na organização da sociedade’ a razão das mazelas sociais”.¹ 1 - Tanto a epigrafe quanto o restante das citações desta parte final do texto podem ser encontradas em: K. Marx; F. Engels. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010, pp. 38-41.Publicado
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